terça-feira, 18 de novembro de 2014



Luz luz luz! Câmera e passividade. De longe até foi bonito. De perto senti falta de fogo, proibido pelos censores da emoção.
Jogo difícil, time difícil, muito ruim, também sem fogo, jogadores se autocensurando pra não suar. PÊNALTI!!! Goleiro expulso!
Esperei ansiosamente pelo acender das almas em um momento desses, desses inenarráveis mesmo. E as luzes vieram. Milhares de torcedores estufaram o peito, ergueram seus grandes e finos telefones. Douglas foi pra bola. Antes de entrar ela ainda tocou na trave, como havia de ser: emoção pura!! E milhares estáticos sem tremer para não estragar o filme.
E os narradores venceram mais uma vez.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Procuras e desencontros


Naquele dia os grãos estavam fragilizados. Grãos de areia. Penso que o movimento do mar depende do estado de espírito da areia. Naquele dia as irreverentes ondas brindavam à ressaca do povo com avidez. Batiam forte e espalhavam o sensível chão, sabedoras que primeiro de janeiro é um dia de misturas.
         O ar de retrospecto me fez acordar cedo e passar o dia caminhando. Comecei com um café na padaria da esquina, ainda com as ideias na teoria da relação. Entre mar e areia. Os dois faziam força para o encontro, tinha certeza, a maré só enchia por também possuir sensibilidade aguçada. Um expresso e um pão na chapa.  Começava uma chuva fraca e triste que me deixou de mau humor: terceiro personagem que complicaria meus pensamentos. Não gosto de chuva nem gosto do sol, me identifiquei com a frase e fiquei com vontade de repeti-la, embora não lembrasse quem meus pensamentos estavam plagiando: Tom Jobim ou Vinicius de Moraes. Pouco importava, na medida em que a dupla me lembrou a imagem de uma linda Ipanema, que vinha nublada para ser perfeita. Já havia definido que a caminhada seria rumo à praia mais próxima.
       Cheguei a pensar em me deixar levar pela música e rumar à Copacabana para um chope gelado e depois andar pela praia até o Leblon. Quase fui mais ousado e conheci Itapuã. Enquanto minha cabeça ia longe, meu corpo continuava a se dirigir para as areias de Icaraí, em Niterói, mais perto de casa. Beber uma água de coco refrescaria a cabeça para mais viagens e também ajudaria a ressaca. Minha dúvida sobre a chuva era saber de que lado ela estava. Juntava-se às duas partes, dando volume às águas e ao mesmo tempo interferindo na consistência do solo. Era o mais político dos três elementos, sem dúvida. Só existia sozinho enquanto não encostava nos outros dois, depois passava a englobá-los. Enquanto procurava um lugar pra almoçar me peguei falando pra chuva: você que entra e não cabe, você vai ter que aprender.
          Encontrei um boteco que servia aqueles pratos feitos. Não era muito bonito, mas o nome, “Barroco”, me cativou. Comida simples e barata. Infelizmente a palavra barata não estava relacionada apenas à refeição: alguns daqueles bichinhos voadores caminhavam com calma pelo chão. Depois que li um livro em que um ser humano acorda sendo uma barata, tento não matá-las. Acho que posso ser assim um dia, barata, chuva, mar, areia, qualquer coisa. Eu já era um pouco de tudo, pensava nos desencontros e casamentos da natureza para melhor entender as relações humanas. E claro que não conseguia. Era uma ideia meio burra.

          A praia, vazia de gente e cheia de lixo, não levantou meu astral. Comprei a água de coco, que desceu amarga, e sentei numa areia úmida mas confortante. Coloquei os pés no mar e olhei para o céu. Por um momento desejei ter o poder da chuva. Chegando em casa, liguei o som em “Água de beber”, fechei os olhos e viajei pra serra, procurando a vida de um riacho.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"Volte a bordo!" - Joaquim Ferreira dos Santos




Volte para o navio, cacete!, e tente reescrever a cena de como estava tudo antes de começar o naufrágio. Sem pânico. Não telefone ao comandante dos portos para dizer que está tudo escuro e que você, socorro!, sente muito medo de não ter mais o controle da situação. Acontece. É da vida de quem se põe ao balanço do oceano. Um dia ele nega os peixes com que você alimentava a Musa protetora. Vire-se.
Você está só na noite imensa, ninguém canta a música inspiradora, o lullaby do boi da cara preta. O barulho dos polvos se aproximando espanta qualquer ideia de salvação. É o vazio, o vazio e o vazio. Só lhe resta voltar a bordo e vibrar o último fósforo. Acender a derradeira vela para refazer os passos de onde estávamos quando a sirene tocou o alarme de que havia água no porão, e ela já causava o embotamento parcial no casco do cérebro.
Caminhe sobre suas próprias pegadas, de preferência as que ainda estão secas, em brasa incandescente. Aquelas que pelas sensações radicais, de ódio ou amor, fazem você se lembrar de tudo. Ali estão, nos lugares de sempre, a coleção do Cavaleiro Negro, a palheta do B.B. King que você pegou num show e o frasco com o perfume da flor da noite que vem da rua onde nasceram as suas filhas. Tudo isso ainda está no navio, e mais os beijos, as traições, os esqueletos de amores vãos, empilhados no fundo falso do corredor. Eles sussurram a canção do “Vingança, vingança aos santos clamar”. Às vezes, você ri. Outras, chora.
Está tudo lá, no velho navio encarquilhado que já foi seu umbigo vistoso, água por todos os cantos, e é preciso traçar o caminho de volta ao controle da situação. Use a memória das migalhas de pão da infância. Abra a pasta de couro da escola e comece de novo. Tente aquele exercício de colocar uma gravura na frente dos olhos e escreva primeiro uma “descrição”, depois, uma “dissertação”. Foi a primeira aula, na primeira escola, o princípio de tudo. Em seguida você singrou mares, escreveu a própria carta náutica jogando nela os perfumes, os sabores e as idiossincrasias que encontrou pelo caminho. Não desista. O importante é voltar a bordo, estúpido! Não se jogue ao mar, em botes covardes e sem imaginação, no primeiro solavanco das ondas. Salve-se com estilo. Procure nas gavetas o caderninho azul onde você anotou a história, que lhe foi contada como real, da grande atriz dramática do Cinema Novo. Em pleno intercurso sexual, ela foi até a janela do edifício de Copacabana e gritou em homenagem ao parceiro, ainda pregado nela, que pusesse a cama na rua — eram os tempos do populismo do Jango — e ensinasse o povo a trepar. As histórias estão no navio do jeito que sempre estiveram. Elas esperam que você se acerte com o farol das vírgulas, ajuste a bússola da semântica e as conduza com carinho ao porto seguro que tiver feito a encomenda.
Volte ao leme, canalha desesperado!, e deixe de fricote. Pare de soluçar que não vai conseguir, que dessa vez a polícia costeira vai chegar, só porque a divina Musa dos mares não respondeu com a pressa de antes. Faz parte da vida de quem navega. Às vezes, falta vento. Ela se negou a dizer — barco afundando, arraias entrando pelos pulmões — como dar a volta nessa falta de imaginação? Faça você mesmo. Assopre as velas.
Anote o que estiver à vista no convés, mesmo que não lhe faça nexo, e pode ser que daí surja o SOS para desvirar o navio. Não há fórmula exata, reinvente a sua. Você viu centenas de vezes o cangote raspado da Jean Seberg, você se arrepiou com as orações que os alto-falantes jogavam sobre a velha Istambul, você apertou a mão do Mick Jagger e lhe disse, sacana, na entonação da música, “Please to meet you”. O que você quer? Quantos amores ainda serão necessários para voltar a inspiração?
Volte a bordo e alimente as máquinas com o carvão dessas histórias. Não há outro combustível possível ao navio de cada um além dos jacarés que se mexiam sob a própria cama da infância, os santos tristes escondidos pela família no Dia de Finados. Volte a bordo, comandante!, e faça o que lhe é inerente. Fogo nas caldeiras das ideias. Uma noite, no cinema, a sua mão desceu trêmula pelo decote da primeira namorada. Outra noite, você perdeu o chão quando leu Manuel Bandeira, e ele dizia que ao encontrar Tereza não viu mais nada, os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
Lembre-se que cada comandante move-se com a energia que embarcou pelos portos da vida. Ao chegar de volta a bordo, na dificuldade de retomar o controle, use da experiência dos lagartos que você viu no Jardim Botânico. Eles correm e param. Na verdade, correm, param e olham, depois voltam a correr. De vez em quando, lançam a língua num inseto e voltam ao que sabem fazer. Correm, param, olham e se deixam confundir com as tramas do arvoredo. Por fim, desaparecem atrás de alguma pedra para anotar em paz as curiosidades que observaram no parque — e repensam a vida.
Volte ao barco, caramba!. Já que, da proa à popa, lhe fugiram todos os heróis, do Capitão Furacão ao Mike Nelson, do Gay Talese ao Rubem Braga, revire os bolsos da calça e tire de lá a filosofia dos lagartos do parque. Junto virão o canivete suíço que os pais davam no início da adolescência; a foto, nua, de uma mulher linda que você já esqueceu o nome; um bilhete do Millôr dizendo que você é capaz, sem se confundir, de misturar alhos com bugalhos na sabedoria de que é tudo a mesma coisa.
Escreva em fluxo contínuo as palavras que estavam sendo sussurradas até que houve o apagão da crise e as vozes ao seu ouvido, antes tão claras e generosas, se calaram. Borogodó, bunda, isonomia, bálsamo, sândalo, apoplexia, descalabro, murucututu. Pode ser que uma dessas seja a senha a ligar novamente os motores, a chave de uma carta náutica ou apenas o mote para uma mensagem na garrafa do náufrago. Não importa. Volte a bordo, cacete! — e ponha o que for, o barco, a crônica, a vida, de novo a navegar.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Esculturas de Icaraí

Segunda-feira, 26 de setembro de 2011 – Dia ensolarado – Branca de areia

De um lado, o Redentor. Do outro, o Museu de Arte Contemporânea. Entre eles, a Branca de Neve.

Parece loucura, mas quem passou pela praia de Icaraí nos últimos dias pôde perceber essa imagem.

Cinco anões desfalcam o grupo de Branca – que, depois de um tempo analisando, vê-se que não é de neve. Os que a acompanham – Feliz e Dunga – contam com os pontos turísticos como extensão do desprivilegiado tamanho. Enquanto o primeiro tem o Cristo logo acima de sua cabeça, o segundo conta o MAC na mesma posição.

Entre olhadas e moedas para o escultor de areia Rafael, responsável pela construção de parte da visão quase fantasiosa, ouve-se a seguinte frase de um carioca da gema: “A melhor coisa de Niterói deixou de ser apenas a vista pro Rio. Conseguiram colocar um disco voador e um desenho de areia nessa história."



Sexta-feira, 21 de outubro de 2011 – Noite – Anjo de areia

Um anjo no meio de escuridão. Simbologia? Sonho? Não, a praia de Icaraí, sua paisagem e as invenções de Rafael.

O escultor de areia cria figuras que, dependendo da situação em que forem vistas, podem ter diferentes interpretações. O breu da noite niteroiense transformou o anjo de areia em uma figura quase solitária.

Difícil identificar com clareza o que quem viu a “branca de areia” em uma manhã de segunda-feira identificara. Pão-de-açúcar, MAC e até mesmo o mar não tão limpo de Icaraí viraram, para os olhos dos admiradores, um único e mero papel de parede negro.

A mensagem que Rafael quis deixar foi clara: a palavra “Paz”, escrita logo abaixo da escultura, não deixou chances para outras possíveis interpretações.

Houve quem discutisse uma pequena luz logo acima da asa esquerda. Alguns afirmaram que seria o Cristo, direto do Rio de Janeiro, que aparecia para fazer companhia ao anjo niteroiense.


Casa na praia em um dia chuvoso pode não ser a melhor opção para muitos. Esta, porém, estava protegida por seu guarda-chuva. A composição improvável formou uma bela imagem.

“Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada”. Só areia. O início de mais uma produção do escultor de areia Rafael teve o imprevisto do mau tempo. Isso, porém, não acabou com o trabalho.

O artista levou um guarda-chuva, na tarde desta segunda-feira, para proteger sua casa(de areia).

A beleza do céu completamente azul não estava presente. Mas, quem chegou por ali, encarando a chuva, pôde presenciar uma imagem digna de cartão postal: em primeiro plano, a pequena casa de areia com a sombrinha levemente inclinada; em segundo plano, o MAC e o Pão-de-açúcar, com uma neblina quase proposital para a cena ficar completa.

Mesmo com frio, teve gente passando e sussurrando a continuação da música: “Mas era feita com muito esmero...”. Disso não tenhamos dúvida.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Um mendigo original - João do Rio

Morreu trasanteontem, às 7 da tarde, de uma congestão, o meu particular amigo, o mendigo Justino Antônio.

Era um homem considerável, sutil e sórdido, com uma rija organização cerebral que se estabelecia neste princípio perfeito: a sociedade tem de dar-me tudo quanto goza, sem abundância mas também sem o meu trabalho - princípio que não era socialista mas era cumprido à risca pela prática rigorosa.

A primeira vez que vi Justino Antônio num alfarrabista da rua São José foi em dia de sábado. Tinha um fraque verde, as botas rotas, o cabelo empastado e uma barba de profeta, suja e cheia de lêndeas. Entrou, estendeu a mão ao alfarrabista.

Hoje, não tem.

Devo notar que há já dois sábados nada me dás.

Não seja importuno. Já disse.

Bem, não te zangues. Notei apenas porque a recusa não foi para sempre. Este cidadão, entretanto, vai ceder-me quinhentos réis.

Eu!

Está claro. Fica com esta despesinha a mais: quinhentos réis aos sábados. É melhor dar a um pobre do que tomar um chope. Peço, porém, para notares que não sou um mordedor, sou mendig0, esmolo, esmolo há vinte anos. Tens diante de ti um mendigo autêntico.

E por que não trabalha?

Porque é inútil.

Dei sorrindo a cédula. Justino não agradeceu, e quando o vimos pelas costas, o alfarrabista indignado prorrompeu contra o malandrim que com tamanho descaro arrancava os níqueis à algibeira alheia. Achei original Justino. Como mendigo era uma curiosa figura perdida em plena cidade, capaz de permitir um pouco de fantasia filosófica em torno de sua diogênica dignidade. Mas o mendigo desapareceu, e só um mês depois, ao sair de casa, encontrei-o à porta.

Deves-me dois mil-réis de quatro sábados, e venho ver se me arranjas umas horas usadas. Estas estão em petição de miséria.

Fi-lo entrar, esperar à porta da saleta, forneci-lhe botas e dinheiro.

E se me desses o almoço?

Mandei arranjar um prato farto, e com a gula de descrevê-lo, fui generoso.

Vem para a mesa.

A mesa e o talher são inutilidades. Não peço senão o que necessito no momento. Pode-se comer perfeitamente sem mesa e sem talher.

Sentou-se num degrau da escada e comeu gravemente o pratarraz. Depois pediu água, limpou as mãos nas calças e desceu.

Espera aí, homem. Que diabo! Nem dizes obrigado.

É inútil dizer obrigado. Só deste o que falta não te faria. E deste por vontade. Talvez fosse até por interesse. Deste-me as botas velhas como quem compra um livro novo. Conheço-te.

Conheces-me?

Não te enchas, vaidoso. Eu conheço tôda a gente. Até para o mês.

Queres um copo de vinho?

Não. Costumo embriagar-me às quintas; hoje é segunda.

Confesso que o mendigo não me deixou uma impressão agradável. Mas era quanto possível novo, inédito, com a sua grosseria e as suas atitudes de Sócrates de ensinamentos. E diariamente lembrava a sua figura, a sua barba cheia de lêndeas... Uma vez vi-o na galeria da Câmara, na primeira fila, assistindo aos debates, e na mesma noite, entrando num teatro do Rocio, o empresário desolado disse-me:

Ah! não imaginas a vazante! É tal que mandei entrar o Justino.

Que Justino?

Não conheces? Um mendigo, um tipo muito interessante, que gosta de teatro. Chega à bilheteira e diz: Hoje não arranjei dinheiro. Posso entrar? A primeira vez que me vieram contar a pilhéria achei tanta graça que consenti. Agora, quando arranja dez tostões compra a senha sem dizer palavra e entra. Quando não arranja repete a frase e entra. Um que mal faz?

Fui ver o curioso homem. Estava em pé em geral, prestando uma sinistra atenção às facécias de certo cômico.

Justino, por que não te sentas?

É inútil. Vejo bem de pé.

Mas o empresário...

Contento-me com a generosidade do empresário.

Mas na Câmara estava sentado.

Lá é a comunhão que paga.

Insisti no interrogatório, a falar da peça, dos atores, dos prazeres, da vida, do socialismo, de uma porção de coisas fúteis, a ver se o mendigo falava.

Justino conservou-se mudo. No intervalo convidei-o a tomar uma soda, por não ser quinta-feira.

Soda é inútil. Estás a aborrecer-me. Vai embora.

Outra qualquer pessoa ficaria indignadíssima. Eu curvei resignadamente a cabeça e acabei vexado.

A voz daquele homem, branca, fria, igual, no mesmo tom, era inexorável.

É um tipo o teu espectador - disse ao empresário.

Ah!... ninguém lhe arranca palavra. Sabes que nunca me disse obrigado?

Eu andava precisamente neste tempo a interrogar mendigos para um inquérito à vida da miséria urbana e alguns dos artigos já haviam aparecido. Dias depois, estando a comprar charutos, entra pela tabacaria adentro o homem estranho.

Queres um charuto?

Inútil. Só fumo às terças e aos domingos. Os charuteiros fornecem-me. Entrei para receber os meus dois mil-réis atrasados e para dizer que não te metas a escrever a meu respeito.

Por quê?

Porque abomino a minha pessoa em letra de forma, apesar de nunca a ter visto assim. Se fizeres a feia ação, sou forçado a brigar contigo, sempre que te encontrar.

A perspectiva de rolar na via pública com um mendigo não me sorria. Justino faria tudo quanto dissera. Depois era um fenômeno de hipnose. Estava inteiramente dominado, escravizado àquela figura esfingética da lama urbana, não tinha forças para resistir à sua calma e fria vontade. Oh! ouvir esse homem! Saber-lhe a vida!

Como certa vez entranto, à 1 hora da manhã, atravessasse o equívoco e silencioso jardim do Rocio, vi uma altercação num banco. Era o tempo em que a polícia resolvera não deixar os vagabundos dormirem nos bancos. Na noite de luar, dois guardas civis batiam-se contra um vulto esquálido de grandes barbas. Acerquei-me. Era ele.

Vamos, seu vagabundo.

É inútil. Não vou.

Vai à força!

É inútil. Sabem o que é este banco para mim? A minha cama de verão há doze anos! De uma hora em diante, por direito de hábito, respeitam-na todos. Tenho visto passar muito guarda, muito suplente, muito delegado. Eles vão-se, eu fico. Nem tu, nem o suplente, nem o comissário, nem o delegado, nem o chefe serão capazes de me tirar esse direito. Moro neste banco há uma dúzia de anos. Boa-noite.

Os civis iam fazer uma violência. Tive de intervir, convencê-los, mostrar autoridade, enquanto Justino, recostado e impassível, dizia:

Deixa. Eles levam-me, eu volto.

Afinal os guardas acederam, e Justino deitou-se completamente.

Foi inútil. Não precisava. Mas eu sou teu amigo?

Meu amigo?

Certo. Nunca te pedi nada que te pudesse fazer falta e nunca te menti. Fica certo. Sou o teu melhor amigo, sou o melhor amigo de toda a gente.

E não gostas de ninguém.

Não é preciso gostar para ser amigo. Amigo é o que não sacrifica.

E desde então comecei a sacrificar-me voluntariamente por ele, a correr à polícia quando o sabia prêso, a procurá-lo quando o não via e desesperado porque não aceitava mais de dois mil-réis da minha bolsa, e dizia, inexorável, a cada prova da minha simpatia:

É inútil, inteiramente inútil!

Durante três anos dei-me com ele sem saber quantos anos tinha ou onde nascera. Nem isso. Apenas ao cabo de seis meses consegui saber que fumava aos domingos e às terças, embebedava-se às quintas, ia ao teatro às sextas e às segundas, e todo dia à Câmara. Nas noites de chuva dormia no chão! Numa hospedaria; em noites secas no seu banco. Nunca tomava banho, pedia pouco, e ao menor alarde de generosidade, limitava o alarde com o seu desolador: é inútil. Teria tido vida melhor? Fora rico, sábio? Amara? Odiara? Sofrera? Ninguém sabia! Um dia disse-lhe:

A tua vida é exemplar. És o Buda contemporâneo da Avenida.

Ele respondeu:

É um erro servir de exemplo. Vivo assim porque entendo viver assim. Condensei apenas os baixos instintos da cobiça, exploração, depravação, egoísmo em que se debatem os homens se na consciência de uma vontade que se restringe e por isso é forte. Numa sociedade em que os parasitas tripudiam - é inútil trabalhar. O trabalho é de resto inútil. Resolvi conduzir-me sem idéias, sem interesse, no meio do desencadear de interesses confessados e inconfessáveis. Sou uma espécie de imposto mínimo, e por isso nem sou malandro, nem mendigo, nem um homem como qualquer - porque não quero mais do que isso.

E não amas?

Nem a mim mesmo porque é inútil. Desses interesses encadeados resolvi, em lugar de explorar a caridade ou outro genêro de comércio, tirar a percentagem mínima, e daí o ter vivido sem esforço com todos os prazeres da sociedade, sem invejas e sem excessos, despercebido como o invísivel. Que fazes tu? Escreves? Tempo perdido com pretensões a tempo ganho. Que gozas tu? Teatros, jantares, festas em excesso nos melhores lugares. Eu gozo também quando tenho vontade, no dia de porcentagem no lugar que quero - o menor, o insignificante - os teatros e tudo quanto a cidade pode dar de interessante aos olhos. Apenas sem ser apontado e sem ter ódios.

Que inteligência a tua!

A verdadeira inteligência é a que se limita para evitar dissabores. Tu podes ter contrariedades. Eu nunca as tive. Nem as terei. Com o meu sistema, dispenso-me de sentir e de fingir, não preciso de ti nem de ninguém, retirando dos defeitos e das organizações más dos homens o subsídio da minha calma vida.

É prodigioso.

É um sistema, que serias incapaz de praticar, porque tu és como todos os outros, ambicioso e sensual.

Quando soube da sua morte corri ao necrotério a fazer-lhe o enterro. Não era possível. Justino tinha deixado um bilhete no bolso pedindo que o enterrassem na vala comum a entrada geral do espetáculo dos vermes.

Saí desolado porque essa criatura fora a única que não me dera nem me tirara, e não chorara, e não sofrera e não gritara, amigo ideal de uma cidade inteira fazendo o que queria sem ir contra pessoa alguma, livre de nós como nós livres dele, a dez mil léguas de nós, posto que ao nosso lado.

E também com certa raiva - por que não dizê-lo? porque o meu interesse fora apenas o desejo teimoso de descobrir um segredo que talvez não tivesse.

Enfim morreu. Ninguém sabia da sua vida, ninguém falou da sua morte. Um bem? Um mal?

Nem uma nem outra coisa, porque, afinal, na vida tudo é inteiramente inútil...

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O senhor das barcas


Dia comum nas barcas: chego às 8:40 para pegar a de 8:50; pessoas com cara de sono vestidas de calça; vendedores ambulantes de jornais populares; cheiro de pão-de-queijo se espalhando pelo saguão; muitas bundas balançando. Costumo me fixar em três pessoas para observar durante a curta viagem. A primeira é sempre escolhida pela bunda, enquanto as outras duas por motivos criativos do momento.

Todos ali têm, claramente, pelo menos duas coisas em comum: vão trabalhar e estão atrasados. Quem não participa de um desses dois grupos provavelmente está ali por acaso e nada mais é do que uma grande exceção. O nosso imenso grupo das barcas é unido principalmente por essas duas características, mas se separa também em nichos menores. Costumo pensar que, apesar de nunca nos falarmos, somos uma grande família – às vezes alguém pode não aparecer, mas vai um substituto que faz as mesmas funções.

Nesse dia, a primeira bunda que me chamou atenção não havia nem entrado no salão de espera. Estava na fila, logo na minha frente. Não era bonita. Me apego às bundas das barcas não pela beleza e nem pelo lado sensual, mas porque acho engraçado o jeito de todas mexerem juntas - tão cedo - no meio da multidão. A moça da bunda usava fone de ouvido e futucava um celular, assim como muitos outros de um grande subgrupo do nosso grupo das barcas.

A segunda pessoa observada desse dia era um senhor que já passava dos 75, o que não é comum. Mas o terno deixava claro que iria trabalhar, embora não estivesse ao meu alcance identificar se estava atrasado – era muito sereno, quase inexpressivo. Embora se destacasse pela sua diferença, ali não o considerei uma exceção. O convidei para entrar no nosso grupo, embora ele não pudesse saber e, pior ainda, talvez não quisesse. Uma pasta de trabalho e um livro literário o acompanhavam.

Entramos na barca, mais pra frente do que pra trás da multidão, pelos meus cálculos daria tempo de sentar. A moça da bunda e o senhor inexpressivo também conseguiriam. Sentei e comecei a observar o vendedor de jornal que enfiava as matérias sangrentas nos olhos das pessoas que pensavam em dormir ou já estavam lendo ou olhando para algo eletrônico. Com aspecto de cansado, esse vendedor ambulante usava calça e jaqueta jeans e não parecia gostar do que estava fazendo(acho que ninguém teria capacidade de gostar). Ele é um excluído do meu grupo, mas tem semelhança com outros dois subgrupos: os vendedores do café e os tripulantes da embarcação. Diferente de nós, que estamos nos pré-trabalhos, eles já praticavam o suado labor. Na verdade, eu e todos os companheiros da barca deveríamos estar no mesmo grupo que eles a essa hora, caso o segundo ponto em comum entre nós não existisse: o atraso.

Na metade do caminho, senti dois tapas no meu ombro. Uma das coisas que mais odeio nessas manhãs é encontrar conhecidos de outro lugar. Me levantei com simpatia e fomos conversando o resto da viagem. Ele me chamava pelo nome, sabia muito sobre mim – parecia esquecer que ali eu era o senhor das barcas, que não falava, mas liderava aquela movimentação todos os dias.

Chegamos ainda conversando, mas na saída não pude deixar de me concentrar no senhor inexpressivo, que fechava o livro, e no vendedor, que ameaçava folhear a quantidade imensa de jornais que ainda tinha nas mãos. Quase cansado, observei a moça da bunda junto com aquele mar de bundas balançando rumo à saída, algumas com mais pressa, outras com mais irresponsabilidade.


sexta-feira, 8 de julho de 2011

Egoísmo (se eu fosse você)

Esta ela e você são a mesma coisa em todas as estações. Para você, Esta ela nada mais é do que uma pequena fração que tem que estar apta a fazer o que você quer que esta ela faça. Para esta ela, você também é essa pequena fração.

Ela estava passando, nem feliz nem triste, só vivendo. Você a viu, ela te viu. Pararam, continuaram vivendo. Acharam um bar, tomaram uma dose. Ela falou de você e você, apesar de gostar de ouvir mais do que falar, disse coisas sobre ela. Você e ela sentiram que estavam vivendo uma experiência nova, mas não pensaram nada sobre isso. Você só pensava nela e ela em você.

Falaram do tempo, mais uma vez sem achar nada. Você e ela chegaram a pensar que meditavam, mas logo viram que não. Pensavam, mas não individualmente. Conversaram sobre as tais estações. Tentaram conversar.

A vontade de pensar no outro era tão grande que, em determinado momento, se abriu uma lacuna: as frases não tinham mais ponto final. As interrogações eram respondidas com interrogações. Ela e você tomaram mais uma dose e foram para o apartamento, dessa vez sem ninguém perguntar. Se dirigiram para um hotel, claro, você não poderia ir para o seu e nem ela para o dela – não existia mais propriedade privada para nenhum dos dois.

Já no quarto escuro do hotel barato, continuaram pensando em segunda pessoa e, justamente por isso, em uma harmonia de pensamentos incrível mas desconhecida, imaginaram, finalmente, uma ação em primeira pessoa(do plural). A imaginação limita. Você e ela ficaram presos para sempre nesse momento. É impossível agir sem pensar em você mesmo - e a falta de ação era o que dava pra fazer, o egoísmo era impossível. É claro que vocês não pensaram nisso, mas hoje vos digo. Pura contradição.

Vocês começaram a enlouquecer. Não sabiam se o que estava acontecendo era caso de psiquiatra, religião ou ciência. Sabiam que era algo sobrenatural. Resolveram, então, acabar com aquilo. Ela ficou com a melhor parte – se eu fosse você, teria escolhido essa.

Você só podia se relacionar na cabeça dela e, desiludidos, resolveram limitar suas vidas ao ponto em que haviam chegado. Não existiu resistência por parte dela quando foi sufocada. Aquela ela tinha acabado e te levado junto. Você não conseguiu se matar depois – seria uma relação muito íntima com você mesmo.

Até hoje você escreve autorretratos em segunda ou terceira pessoa. Você viveu o resto da vida em silêncio.